carta amarela #66 – o amor e a morte são surreais

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Belo Horizonte, 24 de outubro de 2013

Queridos amigos,

Lembro-me quando, depois de muito tempo querendo, resolvi comprar uma cachorrinha. Uma yorkshire. Decidi colocar um nome fácil, simples e fofo: Lola. Fui buscar Lola em Sabará e ela veio: uma coisinha minúscula, de dois meses de vida, toda tremendo de medo. Segurei ela em meu colo e sentei no carro. O medo era tanto que ela fez xixi em meu colo. Lola não desagarrou de mim. Eu ia assistir TV ela estava lá, eu ia cozinhar, ela estava no meu pé. Toda pititinha. Aí que resolvi ir pra casa dos meus pais com ela. Havia 15 dias que ela estava comigo. Ela deu uma voltinha na grama, não sei o que fez, mas voltou vomitando. Lola faleceu na mesma hora. Não sei explicar a falta que ali me acometeu, mas chorei compulsivamente. Até hoje não sei explicar o quanto amei e o quanto foi importante pra minha vida aquela bolinha de pelo que grudou em mim por duas semanas e se foi.

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O amor e a morte são coisas surreais. Talvez resida um pouco nisso o quanto me tocou terminar de ler o livro A Espuma dos Dias essa semana. É um livro surreal (quem já leu ou ao menos viu o filme vai entender o que digo). Mas é um desses poucos livros que senti que são de coração pra coração. Colin é um bon vivant que, rico, nunca precisou trabalhar. Vive sua vida de festas e refeições incríveis feitas pelo seu cozinheiro e amigo Nicolas. Até que um dia viu que todos os seus amigos se apaixonaram e sente um vazio enorme em nunca ter vivido um amor. Acaba por conhecer Chloé, uma jovem que parecia completar aquilo que lhe faltava. Se apaixonam, casam e um dia Chloé começa a se sentir mal e descobre que uma flor de lótus nasceu em seu pulmão. Colin então dedica todo o seu tempo e dinheiro em não deixá-la morrer. Com isso precisa trabalhar no que for pra ganhar dinheiro. Vian, o autor, faz críticas pesadíssimas às condições subhumanas de trabalho (e também critica fortemente as crendices e religiões em passagens assustadoras e reais). Mas a grande coisa aqui é o até onde se vai por amor e a inevitabilidade da morte. Como a cor e a delícia do amor vão se transformando e se deteriorando com a dor e tristeza que a doença assola não só a doente, mas seu marido e amigos.

Acho interessante observar essa tempestade de sentimentos que somos, e como eles por muitas vezes comandam nossa vida. As pessoas se atraem por razões que não sei explicar, se juntam e deixam de querer alguém muitas vezes por razões que a gente não sabe mesmo explicar. Uma relação parece ótima. Até que o outro te responde uma simples coisinha de forma ríspida e seu dia fica todo azedo depois disso. E aí conversa, discute, fala que vai mudar pra meia hora depois se contradizer de alguma forma. A gente despeja sobre os outros nossas vontades, necessidades, e também nossos medos. É muito fácil a gente entrar nessa tempestade de sentimentos e pensamentos ruins. Quanta gente não toma decisões estúpidas no meio de um furacão emocional por pura insegurança? Quanta gente por aí não quer vasculhar o facebook ou e-mail do namorado ou namorada por insegurança de achar que ele ou ela estão traindo? E nisso se acham no direito de invadir algo tão pessoal do outro, assim, num turbilhão desses sentimentos de insegurança.

É difícil achar o equilíbrio entre a razão e a emoção. Os laços racionais são frágeis, os emocionais não. Deve existir ali uma compreensão afetiva, em que os sentimentos conversam e as trocas racionais acontecem com muito mais facilidade.

A gente nunca está realmente preparado pra quando vem o amor ou a morte. Mas a gente pode sim ser dono desses sentimentos e pensamentos que trazem equilíbrio pra vida em relação e tranquilidade quando algo morre ou chega ao fim. É uma atenção constante no dia a dia, é o dosar bem as coisas com o coração e com a razão. Quando um trabalha com o outro a gente consegue ter mais consciência das coisas, e não ficar por aí catando enguias que saem de torneiras (quem leu o livro vai entender).

Um abraço reconfortado pensando na Lola, aquela bolinha de pelo que me fez rir e chorar,

Gui

PS.: A frase que ilustrei na imagem é do livro (A Espuma dos Dias, Boris Vian). É uma das citações que me tocou, numa tradução para o português feita por mim mesmo a partir do original em francês “Je ne veux pas gagner ma vie, je l’ai.”.

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  • Marcia diz:

    Muito bem escrito e muito bem sentido Gui (olha só que intimidade !!). Compartilho dos seus sentimentos e palavras. Hoje em dia, vou assumindo em mim a incapacidade para controlar; me parece que tudo que é importante não é passível de controle. A gente se ilude achando que sim, mas é só ilusão mesmo. E o lance é que a vida é para ser vivida mesmo, não dá para ficar aqui à passeio. Vc realmente TEM uma vida, não ha necessidade de GANHA-LA.
    Parabéns pelo seu blog e pelo seu caminho.
    Grande abraço.

  • […] Esse livro me tocou tanto e me fez ter tantas reflexões que não dediquei a ele uma resenha, e sim uma carta amarela. Sei que muitos não gostam do filme (que eu acho lindo), mas o livro em si é um clássico da literatura francesa, dessas de leitura obrigatória na escola. Deveria ser obrigatório é pra vida, pois o amor e a morte talvez sejam das coisas mais difíceis de entender na vida, e esse é um livro que me fez refletir muito sobre isso. [a carta amarela sobre ele aqui] […]

  • Monica Martins Fontes diz:

    Acabei de ler esse livro e ainda estou com a sensação de que descobri algo importante, sem saber o que!!!
    “…te amo no atacado e no varejo…”

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