carta amarela #32 – parte II

Paris, 3 de setembro de 2012

Queridos amigos,

Terça-feira passada acordei bem cedinho. Eram 4h30, madrugada ainda. Escuro. O verão parisiense parecia ainda mais frio que o inverno que eu pegara em Belo Horizonte. Mesclava ansiedade, sono, alegria, receio.

Como disse uma amiga quando começou seu estágio, nossa vida em Paris é dividida de certa forma como um livro: a parte I foi a escola e a parte II são nossos estágios como pâtissiers.

E assim começou meu primeiro dia na Pâtisserie de L’Eglise. Na chegada, conheci toda a enorme cozinha, o pessoal com quem eu ia trabalhar. E comecei as minhas inúmeras dificuldades: em saber o nome de tudo em francês, em lembrar o passo a passo de diversos procedimentos, em tentar guardar o nome de todas as pessoas que trabalham ali… Mas eles são incrivelmente pacientes comigo. Eu só preciso mesmo é ser mais rápido no que faço. Tudo que eu ouço é: vite ! vite ! vite ! (rápido! rápido! rápido!).

Estou trabalhando na área de entremets (pronúncia: ‘antremês’ – aqueles ‘bolos’ franceses super sofisticados que tem pelo menos três camadas diferentes e que são mais cremes que bolo mesmo). Como estagiário, eu basicamente organizo os anéis onde a gente os coloca, colocando em placas, fixando plásticos neles. Desenformo todos os entremets (isso dá um trabaaalho, é preciso um maçarico, pois ficam congelados nos anéis) e faço pequenas coisas pra decoração, pico frutas e brioches, corto biscuits… Basicamente detalhes. Parece pouco mas é incrivelmente trabalhoso – eu e os dois pâtissiers que trabalham na seção de entremets devemos ter feito cerca de 1300 entremets de diversos tamanhos em 6 dias.

A cozinha enorme é dividida em seções: tem a parte de boulangerie (padaria), onde fabricam os pães, brioches, chouquettes, croissants (o de amêndoas de lá é dos melhores que já comi), pains au chocolats e tortas de frutas simples. Existe uma parte da cozinha que se dedica a pâte-a-choux (pronuncia-se ‘patachu’ – a massa que origina eclairs, religieuses e base pro croque en bouche) e macarons, a parte dos entremets (fazemos algumas tortas também) e a chocolaterie, onde fabricam bombons, fazem torres eiffel de chocolate e outras coisas assim, além de prepararem decorações em chocolate que vamos usar na decoração dos entremets.

Trabalho 9 horas por dia, 5 dias na semana, de quarta a domingo. Começo às 6h e saio exausto às 16h. Temos meia hora de café da manhã às 9h30 e meia hora de almoço às 14h. No domingo começo a trabalhar às 4h. Pra mim que sempre fui de dormir tarde tem sido difícil, mas faz parte. A semana voou e não fiz quase mais nada do que trabalhar. Mas aí parei pra pensar e lembrei do meu objetivo ao vir aqui: não era fazer turismo e nem encontrar um amor. Era vir aprender a pâtisserie na ‘raíz’. E é por isso mesmo que acordo bem cedo, vou a pé no frio (o metrô só começa a funcionar mais tarde), e mesmo tendo queimado 6 dedos e cortado outros 2 nessa primeira semana, saio satisfeito em estar aprendendo e vivendo isso.

No domingo tive uma grande oportunidade: enfeitei quase todos os entremets. Nunca imaginei que iam deixar um estagiário fazer isso, ainda mais na primeira semana. E foi assim. Na saída, despedi-me do chef Jean Claude Vergne e ele me disse: “Quando chef Averty (meu professor-orientador-chef na Ferrandi) me ligou para lhe encaixar aqui pensei que não queria um estagiário estrangeiro. Mas ele me disse que era brasileiro e que era bom no que fazia, e resolvi aceitar. Eu não estava errado, os brasileiros são bons mesmo!”. Saí de lá tranquilo com o que ele disse, passei em frente à pâtisserie e estavam dois de cada na vitrine. Sim, desses mesmos que ilustram esta carta amarela. Olhei as etiquetas e os preços saltavam na minha frente: 44,50 euros valia um doce que ajudei a fazer! E estavam lindos ali, prontos pra que alguém pudesse levar pra casa e ter a sobremesa do almoço de domingo. Senti orgulho de mim mesmo. E me senti recompensado de todo o trabalho duro da semana. Fui para o parque encontrar vários amigos mineiros e fazer um piquenique. Respirei fundo olhando a natureza e me senti muito grato por tudo o que vivo em Paris.

Um abraço tão intenso quanto as várias camadas de um entremet,

Gui

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