carta amarela #26 – vítimas da guerra

Paris, 05 de agosto de 2012

Queridos amigos,

O outono chegou. Não, não, ainda é verão. Mas as primeiras folhas começaram a cair. A cidade parece meio fantasma. Os franceses, quase todos viajando. Restaurante fechados. Lojas fechadas. Bares fechados.

E foi nesse contexto que o encontrei. Apareceu, querendo notícias. Perguntou-me como eu estava e soltei tudo, sem parar para respirar. Enumerei todos os acontecimentos. E vi nos seus olhos vários medos e angústias. Quis chorar, mas lutei contra minhas lágrimas.

Saí em disparada e entrei no Père Lachaise pela primeira vez. O maior cemitério de Paris e um dos mais famosos do mundo. Esteve sempre ali, na esquina de casa, e nunca tinha entrado. Vi Edith Piaf, Oscar Wilde, Proust, Chopin, Jim Morrison, Molière. Ensaiei em minha mente e em meu coração, um último tango em Paris, em frente ao túmulo de Maria Schneider.

Saí andando pela beirada do cemitério.

Aquelas árvores e a grama ao lado da calçada me davam uma sensação indescritível. Nunca fui exatamente fã de cemitérios, mas estar ali do lado me dava uma espécie de paz, talvez. Nesse dia em especial ventava bastante. Era um vento não usual, mais quente, levemente úmido. Subi a avenida Gambetta. Vi uma moça atravessando a rua. Espadriles nos pés, short de alfaiataria preto e uma camisa creme com pequenas florzinhas. Os cabelos curtos esvoaçavam pelo seu rosto. Entre lágrimas.

Comecei a chorar também. Não sou bom em esconder sentimentos, e eu também estava recoberto por muitos deles. Resolvi entrar no primeiro supermercado que vi e comprar uma garrafa de coca-cola. A fila do caixa, resultado de fim de tarde, era grande. Como sempre, somente um caixa aberto. Fiquei pensando na menina, no que poderia ter acontecido com ela. Olhei pro chão. Entre o meu vans cor de rosa, vi um all star, desses azuis, daqueles bem comuns. Com cara de novo, não de velho e gasto. Aquele pé, nessa mesma hora, esbarrou no meu. Subi lentamente meus olhos por aquela pessoa, me virando. Calça jeans azul com a barra dobrada, camisa pólo vermelha, com todos os botões abertos. Ao chegar ao rosto, um sorriso. Não era nem de longe o sorriso mais bonito que vi. Dentes amarelados, levemente tortos. Mas me fixei ali. Acho que abri um sorriso frouxo e me virei de volta. Fico sem graça com essas coisas. Aqui as pessoas não sorriem tanto.

Então ouvi uma voz grave e doce me perguntar:

_Você não é daqui, é?

Me virei ainda sem graça e foi então que me deparei com o rosto completo. Barba loira levemente ruiva. Cabelos num tom de loiro bem claro, perfeitamente arrumados em um topete. Entre os cabelos raspados na lateral, algumas pequenas mechas insistiam em cair. Pele clara, olhos bem azuis. Daqueles infinitos azuis que eu tanto gosto de nadar. Nariz francês, assim meio grande e ‘batatudo’. E aquele sorriso gostoso, sem medo das pequenas rugas que já surgiam naquele rosto.

Era o outro ‘ele’. Encheu meu coração de alegria, vinho e risadas. Vagamos pelo Marais. Se despediu de mim com um beijo na testa e um au revoir, mon charmant voisin.

Não sei se verei nenhum dos dois de novo. Talvez sim. Talvez não. A gente esbarra pelas pessoas no caminho. Peguei-me lembrando das palavras no túmulo de Oscar Wilde: “E lágrimas desconhecidas encherão para ele a urna da Compaixão, há muito trincada. Pois quem o pranteia são homens proscritos e esses choram sempre”.

Chorei de novo. Com um sorriso no rosto.

Um último abraço aos 26,

Gui

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