carta amarela #93 – entrelinhas

carta amarela #93 – entrelinhas

Paris, 15 de outubro de 2014

Queridos amigos,

Acordei e fazia um dia lindo lindo. O vento avisava que ainda fazia frio. Um outubro meio lá meio cá, com dias lindos e levemente frios. Precisei sair a pé. Desci toda a Rue de Ménilmontant, emendei na Oberkampf e andei, andei. Deu pra sentir calor. Precisei tirar a jaqueta e deixar o vento levemente frio bater sobre mim, mesmo assim. Queria ver uma exposição no Grand Palais, e ao chegar lá, duas horas depois de sair de casa a pé – é looonge -, terça era o único dia da exposição fechada. Paciência, eu deveria ter olhado antes na internet. Olhei pra baixo e vi uma poça d’água. Enorme. Dela refletiam as pessoas que passavam. Mais que isso, refletia o céu azulzinho azulzinho. Resolvi que precisava olhar pra cima. Fui até a Printemps. Me disseram que lá de cima era a vista mais bonita de Paris. Cheguei ao nono andar.

A beleza do dia e da cidade toda ali ao meu redor me fez abrir um sorriso enorme. Me fez inflar bem o peito com aquele ar que passava e vinha de todos os lados. O sol já do fim de tarde percorria cada cantinho do terraço. Olhei para as pessoas. Elas olhavam para a vista, para o celular, para uma câmera. Tenho tido uma sensação grande recentemente de que as pessoas de alguma forma não se surpreendem mais. Acham bonito, mas ó, nada mais é que a obrigação do mundo. Como se nada fosse bom o suficiente.

Foi aí que vi duas menininhas loirinhas espevitadas correndo por ali. Elas chegavam nas beiradas e uma apontava pra outra alguma coisa. Elas enxergavam muitas coisas que ninguém estava enxergando. Viram uma mulher de chapéu atravessando a rua. Viram um grafite sobre um dos telhados de Paris. Corriam, iam pra outra beirada e viram a Torre Eiffel. Pro outro e viram um cartaz de rua que acharam engraçado. Elas aproveitavam o sol. Aproveitavam o espaço. Se sentiam donas do mundo e que o mundo era uma grande parte dela de alguma forma. Correram pra mãe e pediram a câmera. Uma câmera grandona, meio pesada. E toda desajeitada uma delas resolveu tirar uma foto. A foto não era da Torre. Não era da Sacre Coeur. Era dos seus pais abraçadinhos num banco olhando praquela vista – com outro olho vigiando as espevitadas, é claro.

Pensei no quanto não quero olhos cansados para o mundo. Quero esses olhos excitados que só as crianças tem. Essa capacidade de ver beleza, de achar tudo lindo e mágico. Vejo o quanto tenho a oportunidade de me empanturrar da beleza que o mundo é. O tempo nos torna mais sábios, é verdade. As experiências nos moldam, as dores viram calos, a gente adota muletas – e vai tudo ficando menos natural, menos bonito, enfim. Mas talvez as coisas ainda possam ser mágicas pra mim. Basta arregalar mais os olhos pro mundo. E ler mais o que existe nas entrelinhas.

Um abraço, querendo mais ainda abraçar o mundo. Esse aí de fora. E também esse mundo que existe dentro de mim.

Gui

PS.: hoje eu achei que a foto do momento descrito valeu mais do que qualquer palavra numa frase.

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  • Cláudia Januário diz:

    A beleza do mundo está nos olhos de quem a vê! Frase clichê, mas verdadeira.

  • jusciene mendes diz:

    Adoro suas cartas amarelas. São lindas, simples e que contagiam a alma e o coração. Bjs

  • diz:

    Já faltam palavras pra elogiar tanta carta amarela delicada! Gostei muito, muitíssimo desta! Beijos

  • Eu também não quero perder a capacidade de ver beleza em tudo e nem a oportunidade de ler cartas tão lindas. Por favor, continue sempre escrevendo.

    xx

  • Mariana D. diz:

    Você tem esse olhar, Gui. Por isso é tão sensível e faz coisas tão lindas, sejam elas receitas, fotos, aquarelas, cartas amarelas. Você tem esse olhar atento e cheio de afeto, como o de uma criança! Abraço!

  • Rogéria diz:

    Não basta ver, Gui, tem que enxergar…
    Belo texto!
    Bj

  • Jéssika diz:

    Oi Gui, deixo de sugestão a leitura de um pequeno texto da Cecília Meireles: A arte de ser feliz.
    Eis um trecho:

    “Tudo está certo, no seu lugar, cumprindo o seu destino.
    E eu me sinto completamente feliz.
    Mas, quando falo dessas pequenas felicidades certas,
    que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem,
    outros que só existem diante das minhas janelas, e outros,
    finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim”.

  • Rosa diz:

    Lembrei do livro O mundo de sofia… do coelho na cartola.
    Lindo!

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