que horas ela volta?

que horas ela volta?

Eu não sei exatamente como anda o Brasil atual. Nesses três anos e meio morando fora, minha visão do país vem filtrada por relatos de família e amigos, além do que eu vejo postado no Facebook e em sites de notícias. O que eu tiro de tudo isso é que o país anda num momento turbulento, complicado – uma situação muito mais profunda do que o discurso fácil “Fora Dilma”.

Mas, ao mesmo tempo, vejo muita discussão sobre comportamentos arcaicos que sempre foram aceitos sem pestanejar. Provavelmente desde que eu nasci (em 1980) nunca questões sobre sexismo, homofobia, racismo e classe social foram tão contestadas. Várias coisas têm mudado para melhor, ainda que tardia e lentamente. É o momento perfeito para um filme como Que Horas Ela Volta?, de Anna Muylaert (já escrevi sobre um filme anterior dela, É Proibido Fumar, aqui no blog).

O núcleo do filme é algo completamente enraizado na sociedade brasileira, e por isso pode parecer enfadonho para algumas pessoas: uma família rica do Morumbi, em São Paulo; uma empregada que trabalha lá há anos, dorme no serviço e quase literalmente vive pra servir os patrões. Ao mesmo tempo, vendo essa situação em 2015, é difícil pensar sobre como isso é arcaico, e absurdo. Um amigo alemão que viu o filme me disse: “Parece Downton Abbey! Só que Downton Abbey se passa há cem anos.”

É vivendo essa vida sem ambições que Val (Regina Casé), o coração da casa, recebe a notícia de que a filha Jéssica (Camila Márdila) está indo a São Paulo para prestar vestibular. Val, nordestina, não vê a filha há mais de dez anos. A chegada dela é a chegada de uma nova geração – geração que se recusa a aceitar os costumes tradicionais de patrões/empregada e vai alterar a vida de todos na casa.

Mas o filme de Anna Muylaert é inteligente demais para simplesmente colocar Jéssica como a “destruidora de costumes” e Val apenas como um recipiente vazio, pronto pra ser preenchido com as ideias refrescantes da filha. É óbvio que Val não leva essa vida porque ela gosta; e é claro que os motivos dela são completamente altruístas. Ainda assim, é tocante ver como Val aceita passivamente seu papel, dizendo coisas como “A pessoa já nasce sabendo o que pode e o que não pode”, quando questionada sobre seus limites na casa.

O que torna Val especial é que ela não é construída como uma figura única, ímpar. Existem milhares de Vals no Brasil, multidões de mulheres levando a mesma vida, criando laços sentimentais mais fortes com os filhos dos patrões do que com os próprios filhos, dormindo nos minúsculos e abafados “quartos de empregada” (honestamente, um dos pleonasmos mais nojentos do Brasil são os tais “quartos de empregada”, muitos inclusive sem janela). Eu adoraria que Que Horas Ela Volta? fosse exibido de graça em centros comunitários, associações de bairro, para que todas as Val do Brasil pudessem se ver na tela.

Mas é impossível elogiar tanto o filme e não direcionar os maiores elogios à atuação de Regina Casé. A atriz é toda coração e calor humano no papel de Val, e nunca apela pro papel de “coitada” – mesmo nos momentos de maior subserviência e injustiça. Não é à toa que Casé papou um prêmio de atuação no Festival de Sundance (compartilhado com a ótima Camila Márdila), e eu ingenuamente quero acreditar que estamos diante de uma nova Fernanda Montenegro em Central do Brasil: uma atuação que vai ser conhecida por cinéfilos de todo o mundo. Ela merece, e Que Horas Ela Volta? também. É um filme tocante, hilário e acima de tudo fundamental.

quehoras02

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