carta amarela #33 – quarto frio

Paris, 12 de setembro de 2012

Queridos amigos,

Não sei por onde começar. Bom, talvez eu saiba. Quero me desculpar pelo sumiço, pela falta de respostas, pelas cartas escassas. O assunto é um só nas últimas três semanas: eu trabalho, eu durmo, eu trabalho, eu durmo, eu trabalho, eu durmo. Eu trabalho, eu trabalho.

Nunca me senti tão exausto. Não reconheço minhas mãos. Antes macias, nelas residem hoje uma quantidade enorme de bolhas vermelhas, cortes pequenos, pele descascada e inchada. Quase o mesmo acontece com o pé. As bolham brotam, as unhas encravam. As pernas bambas. A coluna ardente. No rosto a total falta de vaidade. A barba que por anos emoldurou meu rosto não existe mais. As olheiras, profundas.

Eu já sabia que profissão cozinha nunca seria fácil. Passo o dia subindo e descendo escadas com sacos de farinha e açúcar, caixas de frutas. Passo correndo pela cozinha enorme. Não se pode esperar nem os 10 segundos da manteiga amolecendo no microondas. As 10 horas seguidas assim são exaustivas, mas ao mesmo tempo emocionantes. Essas horas ali voam. Entre quilos e mais quilos de pâte-à-choux feitas, assadas, recheadas e decoradas, resido ali num pedacinho da cozinha. Entre mini tortas de morango, framboesa. A cozinha, no fundo, emite uma beleza extraordinária.

Pela primeira vez me vi pensando em francês. Assim, sem pensar em português e traduzir. Vi-me fazendo automaticamente várias eclairs. Vi-me virando um ‘ás’ no saco de confeitar. Vi crianças na pâtisserie com sorrisos de fondant au chocolat que eu mesmo fiz.

E, exausto, quando o sorriso queria ficar amarelado ou sumir de vez, desci todos os dias para casa a pé. E, talvez ali eu realmente senti Paris como aquela moça do filme do Alexander Payne. O 20ème é todo pintado, rabiscado. E cada uma daquelas artes me fez sorrir, instagramar e embalar os sonhos mais profundos.

O brilho nos meus olhos? Ah, esse nunca vai faltar.

Um beijo pela metade, de quem dormiu no meio do caminho,

Gui

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