carta amarela #21 – a carta que nunca recebi

Paris, 28 de junho de 2012

Mon beau,

Era sexta-feira. Acordei bem cedinho e vi que havia parado de chover. Não recebia notícias suas fazia meses. Olhei para as heras do pátio e vi várias gotinhas da chuva da noite ali ainda. Mas já havia o canto tímido de alguns poucos pássaros. Era um conforto, ao menos. Desci as escadas correndo e quase escorreguei em uma poça próxima daquele banco de ferro. Cheguei enfim à caixa do correio. Entre todas as malas diretas, procurei a sua letra e não encontrei.

Voltei vagarosamente para dentro de casa. Joguei a blusa de frio na mesa, a chave na escrivaninha. Sentei-me na beirada da cama vermelha e pus-me a chorar. Não entrei em contato esses meses todos porque acreditei que as circunstâncias da sua ida pediam um encontro frente a frente algum dia – e ligar para você era algo impossível.

Então escrevi várias cartas que nunca te mandei. Cerca de 21. Minto, são exatas 24. Você sabe, meu número da sorte. Elas hoje decoram o meu quarto, formando uma pilha em cima da cômoda branca. Lembro que na última noite que conversamos você me disse coisas confusas. Percebi que você não planejava voltar. Pensando bem acho que não enviei essas cartas nunca porque no fundo elas me eram algum tipo de conforto.

Com a sua partida, as paredes ficaram menos vermelhas. Andei procurando um quadro novo pra colocar em cima da mesa. Também não encontrei ainda o forno que queria pra cozinha. Essas coisas práticas, afinal, não me cutucam no fim do dia. O que me faz falta mesmo, é você.

Resolvi abrir a caixa onde escondi as suas coisas. A pulseira ainda estava lá. As cartas que você escondia pela minha casa só para eu ter o prazer de encontrar em um momento sem você também estão ali. O suéter que você deixou com seu cheiro, não guardei. Desculpa, mas usei até que seu cheiro ali se esvaiu. Sei que era verão. Mas esses verões chuvosos de ventania parisienses me pediram conforto. E ali, no suéter, achei. As suas infinitas palavras, doídas, mas lindas, ainda formam a cabeceira que minha cama até então não tinha.

Sei que você nunca vai ler essa carta que escrevi. Da mesma forma que nunca vou ler uma carta que você não escreveu.

Um beijo ávido por esses dias de céu azul que quase nunca aparecem por aqui,

Ton beau.

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  • Ton beau diz:

    Viena, 28 de junho de 1990

    Mon beau,

    Eu ainda nem o conheço, mas sei que a nossa história será ótima. Ótima no sentido de que será rica em acontecimentos, alguns deles bons, alguns deles ruins. Sei também que a minha partida não será o último deles, dado que recebi a sua carta não enviada e não seriam tais cartas amarelas um acontecimento em si.

    Você fala do espólio que ficou, das coisas e da minha falta. Te digo somente que, talvez se eu tivesse ficado, você nem me notaria mais, nem os meus suéteres encardidos, nem as pulserias gastas pelo tempo e nem todas as coisas que você ainda vai notar pela casa que ainda habita.

    Acho que o mesmo vale para mim. Não esqueço-te por um só dia, apenas porque sei que um dia te abandonarei e que esse não será o nosso grand finale.

    Por favor, não venha a Viena procurar dias de céu azul ou a mim. Um beijo daquele que você nem imagina quem seja,

    Ton beau.

  • Rita diz:

    Lindo…vc tem que publicar…faça planos

  • Mariana diz:

    pode ficar com o olho cheio d’água ao ler isso, por estar sentindo todas essas coisas?
    seus textos são sempre excelentes…

  • Faço minhas as palavras da Mariana!
    E a vida sempre nos supreende né Gui? Eu já disse isso aqui e repito, você é sensacional, e merece ser muuuito feliz! Continue sentindo tudo intensamente e não perca nunca essa sensibilidade, você consegue expor com palavras o que a maioria das pessoas não conseguem nem entender!
    Torço muito por você!
    Beijão

  • nao sei porque demorei tanto pra entrar aqui, e agora q entrei nao quero sair. Fantástico seu texto! Saudade de uma amiga antiiiiiiiiiiiiga. Boa sorte 😉

  • “Sei que você nunca vai ler essa carta que escrevi. Da mesma forma que nunca vou ler uma carta que você não escreveu”.

    Ainda não sei o que tá acontecendo mas estou viciado em ler seus textos. Beijos

  • denise diz:

    lindo….chorei…

  • […] Sempre li de músicos, escritores e artistas em geral que as melhores composições, livros e afins vem de alguma dor sofrida. Não sei se é o caso, mas gosto muito dessa carta que escrevi ao fim de um relacionamento. Hoje, de coração curado a gente olha pro passado, lembra dos detalhes e vê que no fundo todo o vivido foi bom. [a carta você lê aqui] […]

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