carta amarela #110 – cintilante

carta amarela #110 – cintilante

Belo Horizonte, 25 de maio de 2015

Queridos amigos,

Acordei sábado bem cedinho pra tentar dar conta da lista de afazeres enorme que parece só aumentar. Puxei a janela e um vento gelado entrou. Abri a veneziana e o dia era bonito, apesar de frio. Sentei-me ainda na cama, meio emburrado, com vontade de passar o dia a ver filmes e séries ou no máximo escrever pra alguns amigos. Mas fui em frente, era muita coisa pra fazer. Já estava no meio da manhã quando uma amiga que não via há tempos me mandou uma mensagem: “Estou em BH! Vem comigo numa palestra às 15h?”. Pensei nos trabalhos que ainda precisava fazer naquele dia, mas resolvi responder: “Claro!”. Tentei focar em fazer o máximo possível até às 14h. Tomei banho e me vesti bonitinho, querendo estar mais arrumado que o dia a dia. Pus um agasalho de lã peludinho, bem quentinho. Resolvi ir a pé.

Por mais que eu saiba exatamente o caminho da Savassi, quis andar por outras ruas. Sábado à tarde, movimento pouco intenso. Em meio a prédios modernos vi alguns antiguinhos, com cara de história. Meio espremidos, em seus pequenos três andares sem elevador. Azulejos com cara de existirem há 50 anos, grades protegendo janelas. Uma senhora olhando a rua, vendo a vida passar. Passei em frente a uma sorveteria, e vi um menino apontar pra mim e dizer pra mãe: “mãe, um moletom feito de ursinho de pelúcia!”. Ri, meio bobo. Me imaginei dizendo a mesma coisa pra minha mãe anos atrás. Lembrei do quanto as crianças enxergam essas coisas simples da vida, que as deixam em estado de graça. Vi algumas árvores meio sem folhas. O vento passando por elas e arrancando algumas das folhas mais secas. Vi alguns vasos azuizinhos, desses azul cobalto intensos, cheios de suculentas lindas na beira de uma janela. Lembrei que era o mesmo azul da porta do primeiro apartamento que morei em Paris.

Foi então que encontrei minha amiga, já na porta do evento. Olhei pra ela e ela também estava com um agasalho de lã peludinho como o meu. Rimos da coincidência e nos abraçamos. Ela me disse: “obrigado por estar disponível”. Lembrei-me do quanto ando meio sumido das pessoas em meio a tanta coisa pra fazer. Pegamos duas cervejas e nos sentamos no primeiro degrauzinho disponível por ali. Ouvi suas cores, seus afetos. Contei dos meus também. Escutamos uma palestra de alguém que foi o único passageiro sobrevivente de um desastre de avião em 73. E de como ele ama a cicatriz de queimadura que rodeia suas costas. Ela faz dele alguém especial. Alguém que continua seguindo em frente, sorrindo.

A noite caiu e no nosso caminho se acenderam luzinhas pequeninas. Luzinhas cintilantes. Achamos espetinhos de churrasquinho de coração de galinha pra vender, e aquilo virou meu jantar. Nos abraçamos, despedimos e eu voltei pra casa. Lembrei do quanto tinha começado a semana emocionado em ver um dos meus sonhos nas minhas mãos: a prova impressa do meu livro pra revisar antes da impressão final. Vi ali materializado algo que queria há muitos e muitos anos. E quando vi, não parecia tão bonito quanto imaginei. Nem tão perfeito. Podia ter fotos mais bonitas. Talvez menos profusão de cores. Achei ainda nessa última revisão um monte de errinhos bobos. Corrigi todos os possíveis. Mas tenho certeza que alguma coisa ainda passou. Abracei aquele sonho. Amo ele com todas as imperfeições que ele tem. Ele pra mim é um pedaço de vida vivida da melhor forma que encontrei ainda nos meus parcos conhecimentos do que a vida é.

E foi no fim desse sábado, ao chegar em casa às 20h e me aninhar entre as cobertas que chorei. Chorei de alegria por ter vivido uma semana muito cheia de trabalho. Que parecia interminável, fatigante, chata. Lembrei de como ainda sou meio impaciente com minha mãe. De como respondi meio ríspido um amigo que veio me contar algo errado que fez. Em como não encontrei tempo pra fazer um favor pra outro amigo. Lembrei também de como em cada dia pequenas coisas vieram pra brilhar. Lembrei da galinhada que um amigo querido fez pra mim na sexta. E como meu sábado mudou ao querer estar disponível pra uma amiga que chamou de última hora. Chorei pensando nas minhas inúmeras imperfeições. E abracei-as tão forte quanto abracei a prova impressa do livro. A vida por vezes vai passando chata, afobada, sem brilho. Lembrei também de quando trabalhei numa pâtisserie em Paris. Eu ficava exausto após horas intermináveis de trabalho, mas meu chef fazia questão que eu saísse do trabalho por dentro da loja, e não pela porta de serviço da cozinha. Era assim que eu via as pessoas ali, comendo os éclairs que eu passara a madrugada fazendo. Lembrei de uma criança com a boca e o sorriso lambuzado do recheio de chocolate. E da sensação feliz que senti por poder ter feito alguém feliz.

Pego essas pequenas recordações do sábado e levo pra dentro do coração. A beleza dos predinhos antigos, a calma da senhora na janela, o soluço do choro incontido, a liberdade das folhas secas, o intenso dos vasinhos azuis, a alegria do menino, a vivacidade da palestra, o calorzinho do abraço da amiga, o gelado da cerveja, o brilho das luzinhas cintilando na rua. São algumas coisinhas diante dos nossos olhos que tornam nossa existência tão boa por aqui.

Um grande abraço, querendo ser como aquela criança, enxergando as coisas em estado de graça,

Gui

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  • Stephanie diz:

    Gui, seu textos são repletos de poesia e um pouco de melancolia (a rima não foi proposital, rsrs)! Ao lê-los, sinto um marulhar estranho dentro de mim, como que fosse o dia a dia, embotado pela rotina, sendo trazido para o exterior e ganhando contornos diferentes. Como bem disse Saramago em “O Ensaio sobre a Cegueira”: ‘se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.’. Então, vamos reparar no que os outros têm a nos dizer, a nos revelar… E assim, “mesmo com todo o emblema, todo o problema, todo o sistema… a gente vai levando”. Um forte abraço!

    • gpoulain gpoulain diz:

      oi Stephanie! acho interessante que te provoca isso, e gosto de fazer as pessoas pensarem sobre a vida sim, sempre de forma leve. outro abraço!

  • Sofia diz:

    Obrigada por compartilhar.

  • NayaraXs diz:

    Suas palavras sempre me lembram músicas… Sempre escolho uma canção especial para dialogar com sua poesia!!!
    E hoje escolhi uma canção q amo “Adam Levine – Lost Star”

    Espero que goste! :)

    Abraços……………………………

  • Rogéria diz:

    Gui, sempre me emociono com seus textos… É tudo tão lindo!!!
    Bj

  • Taís diz:

    Gui,eu sempre tento mandar coisas boas no ar para você quando sinto esse calorzinho bom que as cartas trazem. Espero que você receba! Abraço :)

  • Luiza Voll diz:

    Lindeza cintilante, só li seu texto lindo hoje. Achei linda a mistura do doce e do amargo da vida, é assim mesmo né? Não existe um sem o outro. Obrigada pela companhia e pelo abraço! Beijo!

  • Não vale me fazer chorar. Não brinco mais! Que texto lindo! E leio ele logo hoje que resolvi dar um passo no escuro tentando abraçar um sonho. Hoje que a palavra abraço tem um significado para mim. Deu vontade de fazer cópias e espalhar pela cidade, colocar debaixo das portas e colar nos postes com a esperança que a vida fique mais suave, mais leve e mais lenta.
    Receba meu abraço, de longe e cheio de orgulhe de saber que você existe!

  • jusciene mendes diz:

    Leu e imagino tudo que vc escreveu. Texto lindo e emocionante.

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